Que as grandes mídias agem em função de interesses, que vão além do interesse público, não é novidade para quem acompanha com olhar crítico o conteúdo veiculado nos diferentes veículos de comunicação. Desta vez, porém, o que me incomodou foi a cobertura do Levante Estudantil que vem acontecendo desde junho, no Chile. A criação de uma personagem-ícone pela imprensa fez com que a beleza de Camila Vallejo, até então presidente da Federação de Estudantes da Universidade do Chile (FECH), fosse mais importante que o próprio movimento. Desde agosto o caso tem sido referenciado principalmente pelo nome de Camila que, sem culpa (será?) levou o título de Musa dos Movimentos Estudantis devido a sua beleza que, a princípio, qualquer estudante universitária poderia ter. A normalidade de Camila talvez tenha chamado a atenção dos Conglomerados da Comunicação, que impregnados pelo estigmatismo e pela regular criminalização dos Movimentos Sociais não acreditam que uma líder do Movimento possa, sim, ser bonita.
Possivelmente, o fato de Camila ter aparência e vestimentas consideravelmente diplomáticas, não condiga com o perfil “revolucionária criminosa” - que há muito vemos estampadas nas notícias da Via Campesina, do MST, dos Ribeirinhos, entre tantos outros Movimentos em que a figura da mulher está dissociada da feminilidade material, que a própria mídia cria. A estudante acabou virando ícone, exatamente por contradizer o perfil desleixado que uma mulher politicamente revolucionária - como a colocam - deva ter. Será mesmo por isso? Fico na pergunta.
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A figura que é valorizada em Camila faz com que as mulheres, jovens e militantes, sejam automaticamente colocadas num lugar de inferioridade – o que me perturba. O destaque da imagem remete a ideia de que a feminilidade representada em Camila é algo extraordinário para o contexto: Vejam só que incrível, uma bonita líder sindicalista.
Ao perceber a forma como a notícia do Levante Estudantil Chileno foi tratada, dentre os maiores portais da internet, impressionou-me, primeiramente, sua origem: as duas maiores agências de notícias do Brasil atualmente, AFP e Estado, liberaram os mesmos leads informativos, em que a titulação de MUSA sobrepunha a importância do Movimento. Imediatamente, sem muita intenção de analisar o caso (só por curiosidade mesmo), comparei as notícias destas agências com as notícias das três maiores agências independentes da América Latina (Carta Maior, a Adital e a IPS notícias). Dos seis portais alimentados pela AFP e Estado, que tenho acompanhando (UOL, R7,G1, Folha, JB e VEJA), somente um trouxe informações relevantes ao movimento:
“O governo chileno apresentou nesta segunda-feira (5) uma proposta para negociar a reforma educacional com os estudantes universitários e secundaristas que, há mais de três meses, promovem protestos nas ruas das principais cidades do Chile para exigir educação gratuita e de qualidade para todos.” (Yanakiew, Mônica, JB, em 05 set 2011)
Mas ainda assim, no decorrer da notícia, o vocativo musa persistia em acompanhar o nome de Camila, sem maiores descrições. Já nas notícias da Carta Maior, o nome de Camila aparece imprescindivelmente acompanhado de suas falas no discurso público . Na Adital, por exemplo, o vínculo das informações com o acontecimento foi maior. Por ser uma agência cooperativa presente em todos os países da América Latina e Caribe, a notícia teve o depoimento de Camila, neste caso tratada como Líder da FECH. A IPS preferiu nem mencionar a líder estudantil, dando ênfase à repreensão política que os estudantes sofriam no Chile.
Se as primeiras referências à “musa do movimento estudantil” já me incomodaram, imagina quando a VEJA resolveu fazer um entrevista exclusiva com a estudante, para saber o que ela pensava do título recebido? Quando Camila veio ao Brasil, convidada pela UNE (União Nacional dos Estudantes), para fazer alianças com o Movimento Estudantil daqui, a revista preocupou-se em fazer uma análise da vida social da estudante em função do novo posto dado a ela.
Segundo a reportagem de Gabriel Castro para a revista, “apesar do visual moderno, reforçado pelo piercing no nariz, Camila ainda defende um discurso antigo”, fator que não a tornaria tão popular, já que “pessoalmente, a personalidade forte não provoca apenas admiração. Pelo contrário” (Gabriel Castro, portal VEJA, 31 ago 2011) . Vale destacar que Camila não deu nenhum depoimentooficial para a revista, apesar do título da matéria afirmar: “no Brasil, Camila Vallejo refuta título de ‘musa dos protestos’”.
Nos outros portais , sem nenhuma surpresa, o foco dado às manifestações resumia-se em Camila Vallejo e as melhorias no sistema da Educação – resenha que, convenhamos, não revela as verdadeiras causas políticas da mobilização, já que desconsideravam o fator histórico das mobilizações estudantis no Chile ocorrerem desde a Ditadura Pinochet.
Mesmo com toda a especulação envolvendo a musa, ainda não acredito que esse tipo veiculação da notícia seja um problema puramente deontológico. Insisto que a tentativa de usar Camila Vallejo como um ícone-jovem dos Movimentos Sociais seja uma estratégia político-midiática para enfraquecer as raízes dos movimentos.
É mais fácil, do ponto de vista midiático, desconstruir um indivíduo pela imagem do que pela sua essência. No caso de Camila, a imagem da moça-bonita é colocada inversamente proporcional ao seu posicionamento-político. Posicionamento que, aliás, só foi divulgado no momento em que as Manifestações terminaram em confronto com a polícia. Para isso a revista VEJA não mediu as palavras ao colocar que o “Movimento Estudantil no Chile, cuja líder comunista veio ao Brasil, aos poucos vira baderna” (Setti, Ricardo.Política & Cia, portal VEJA, 31 ago 2011).
É evidente a crítica abusiva que a revista, e também os outros meios de comunicação, tentaram fazer ao implantar a imagem de Camila contra seus próprios ideais. O fato de a estudante fazer parte do Partido Comunista soa, para os que defendem o sistema neoliberal (ao qual o movimento tanto rebate), como uma alusão direta à bagunça, à baderna, às rebeliões. Assim, a produção de sentidos vinculados à notícia permite entender que as Manifestações Estudantis são uma bobagem de jovens universitários que, liderados por uma menina bonita e baderneira, querem aparecer nos veículos de comunicação.
Estes destaques dados à Líder Estudantil só me convencem de que o Movimento foi ferido pela superficialidade que geralmente é vendida aos jovens. E mais, o apelo de ter uma musa num Movimento Jovem só reforça costume das mídias de massas em querer estereotipar as classes.
Sendo um Movimento Jovial, logo, tem-se o lugar perfeito para transformar Camila Vallejo na musa POP dos movimentos estudantis. Obviamente que essa POPularização midiática desfoca o real intuito dos Movimentos, e ainda, descredibiliza as reivindicações para as transformações sociais. Aliás, onde elas estão mesmo?
As reivindicações sociais no discurso de Camila só puderam, enfim, serem conhecidas durante sua campanha para reeleição à presidente da FECH, no final de setembro. Antes disso, parecia que a musa não tinha voz. Era só uma baderneira bonita. E outra vez os interesses político-midiáticos falaram por si.
Durante a campanha, o nome de Camila foi, de longe, mais divulgado do que do opositor, Gabriel Boric. Defensor da esquerda-autônoma, Boric, que defende um posicionamento livre de intenções partidárias, participou de todas as manifestações em que Camila esteve. Mas onde apareceu “o muso” do movimento estudantil?
Um fato curioso, porém, deu-se semana passada (07/12): mesmo com toda a visibilidade criada sobre Camila, Boric venceu as eleições para Presidente da FECH. Então, recorri aos mesmos portais para conferir como a notícia iria ser tratada desta vez. Conforme esperado, novamente a maioria destacava que a “Musa dos protestos estudantis do Chile, Camila Vallejo, perdeu reeleição”. Apenas.
No corpo das notícias (repetidas) seguiam as mesmas descrições da estudante de geografia, de 23 anos, carismática, linda, e que perdeu as eleições para Boric. Onde estavam as falas de Camila? E as de Boric? Cadê os discursos e propostas de gestão? Nada.
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Do novo presidente da Federação de Estudantes da Universidade do Chile (FECH) pouco, ou nada se falou. O resultado das eleições só comprova a seriedade e a capacidade de discernimento dos Estudantes frente às máscaras midiáticas que surgem. Tanto que em nota de agradecimento no seu blog pessoal (gabrielboric.blogspot.com), Boric reafirmou que a sua eleição só comprova que “o movimento não morreu. Ele está vivo e revigorado, ainda que tentem desviá-lo do rumo” (Boric, Gabriel. Blog pessoal, 07 dez 2011).
Camila Vallejo não se pronunciou, apesar de ter aparecido em várias fotos cumprimentando o adversário. Dois dias depois (09/12), seu blog (camilapresidenta.blogspot.com) saiu do ar. As notícias sobre Movimentos Estudantis nos grandes portais se concetraram no caso da USP ocorrido no início denovembro (08/11), cujas resoluções ainda estão na dependência do Ministério Público.
Assim, a colocação da notícia como tem sido só reforça a intencionalidade político-midiática em deturpar os movimentos sociais, visto que a proporção [e a freqüência] que têm tomado, encara as ordens do poder público – e por vezes, da própria mídia formal. Não só Camila, mas tantas outras musas e heróis sindicalistas foram criados pela mídia como símbolo dos movimentos. Uma vez que estes símbolos se desmancham, a identidade dos movimentos também. Felizmente, como vimos, os ideais das manifestações populares não pairam sobre a superficialidade dos argumentos construídos pela mídia. Assim como Camila continuará sendo bonita, dentro ou fora da liderança estudantil, as mobilizações continuarão acontecendo com ou sem Camila. Mas o que realmente importa é que o que se vê nas ruas. Lá, todos somos iguais. Nãos existem
Comentário escrito em novembro de 2011.